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03 fevereiro, 2008

Sem tirar nem por...

Sou republicano, não porque assim tenha nascido, mas porque o estudo da História de Portugal me ensinou a suspeitar das capacidades mentais dos reis portugueses para o exercício do poder, de D. Afonso VI a D. Manuel II, com a sóbria excepção de D. Pedro IV e D. Pedro V. Porém, como republicano, não estou seguro de que a I República tenha valido a pena e estou convicto de que a prática do assassínio político (Sidónio Pais; a matança de Machado dos Santos e seus companheiros) e a permanente situação de bombismo anarco-sindicalista, nela imperante, derivaram em grande parte do eticamente infame e politicamente suicida assassínio de D. Carlos às mãos de extremistas da Carbonária em 1908. É minha profunda convicção de que a evolução da monarquia liberal, caso tivesse sobrevivido, adaptada ao tempo europeu, teria igualmente promulgado as leis mais importantes da República (lei da separação Igreja/Estado; lei da laicidade do ensino; da reforma da universidade; lei do divórcio; lei do registo civil; nacionalização de algumas propriedades da Igreja…). Porém, acompanhando idêntica transição em França e na Espanha, é minha convicção de que em Portugal, seguindo o ar europeu do tempo, que desde 1789 soprava generosamente da França, a evolução da monarquia para a república era inevitável, menos devido à agitação republicana e mais às divisões entre os monárquicos, evidenciando o lento e histórico esgotamento das famílias nobres nos três últimos séculos. As três purgas na elite nobre subsequentes à consolidação do Império (Alcácer Quibir, séc. XVI; Restauração, séc. XVII; repressão pombalina, séc. XVIII), bem como a divisão da casa real entre liberais e absolutistas no séc. XIX, tinham definitivamente destroçado as qualidades de comando político da aristocracia portuguesa, excessivamente cortesã para que o povo nela se revisse. Nos finais do século XIX, como a crise do Ultimatum o provou, era absolutamente necessário regenerar a elite dirigente de Portugal, transferindo o poder para grupos sociais mais enérgicos, como os advogados, os banqueiros, os comerciantes, os professores universitários. Se Portugal fosse a Inglaterra, D. Carlos poderia ter sido o rei "oportuno", travando a decadência da monarquia, restaurando-a. Mas D. Carlos foi um rei inglês sentado num trono português, povo constitutivamente mais votado a revoluções que a reformas. Não admira: em 1890, 75% dos portugueses eram analfabetos; a Igreja Católica, assoberbada desde 1820 pelo jacobinismo, sobrevivia fundada menos na devoção e mais na superstição (que desembocará em Fátima, 1917); mais de 80% dos portugueses viviam no campo, sem assistência médica nem escolar e com um mínimo de estradas de macadame; o regime censitário afastava das eleições a maioria da população; a crise nas finanças públicas arrastava- -se desde 1890 e nem a sobrecarga de impostos e taxas de Oliveira Martins a tinham amortecido; o aproveitamento mediático dos empréstimos do Governo à Casa Real tinha abalado o já distante prestígio popular de D. Carlos e de D. Amélia; a subelite monárquica que girava em torno da Ajuda fora igualmente martirizada pelas cisões de José Alpoim e de João Franco nos partidos Progressista e Regenerador; não existia projecto político que não fosse avançar com obras públicas à custa de empréstimos estrangeiros, cujos juros asfixiavam a economia do País.

Porém, a instauração da república significava o exílio do rei, não o seu assassínio. O regicídio, se findou a monarquia, condenou ab ovo a república, que subsistirá em estado de expiação durante 16 anos (menos de metade da nossa actual democracia), até igualmente se perder às mãos de uma ditadura militar. Assim vivemos 74 anos do sé. XX - entre Buíças e Salazares, dois radicais, de que Portugal não deve orgulhar-se.
Por Miguel Real
professor universitário, escritor e investigador .
No DN 02-02-2008

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